Gabriela Portugal,
investigadora na área da infância, diz que em Portugal "educar para a autonomia
é algo que se faz ainda de forma muito limitada."
Acusa os adultos de ignorarem o potencial de aprendizagem das crianças. Apesar de toda uma "retórica" em que se garante a consideração pelas "necessidades e interesses" dos mais pequenos. Gabriela Portugal, docente e investigadora do Departamento de Educação da Universidade de Aveiro, não tem dúvidas: "As nossas crianças são pouco autónomas porque não as educamos para a autonomia".
Autora de inúmeros trabalhos, sobre qualidade educativa, espaços em creches e ecologia do desenvolvimento, destacam-se as obras " Ecologia e desenvolvimento humano em Bronfenbrenner" (1992) e "Crianças, famílias e Creche. Uma abordagem ecológica da adaptação do bebé à creche" (1998).
Recentemente, Gabriela Portugal, publicou a obra "Avaliação em Educação Pré-Escolar - sistema de acompanhamento das crianças" (2010) que, segundo explica, permite aos educadores avaliar o "contexto educacional da sua responsabilidade"[ver caixa]. Alguns dos seus artigos constam nos mais importantes pareceres do Conselho Nacional de Educação sobre a infância: "Educação das Crianças dos 0 aos 12 anos" (2009) e "Educação das Crianças dos 0 aos 3 anos" (2011).
"Nós somos mais superprotetores e isso envolve uma atitude mais limitadora ou cerceadora da ação e movimentação da criança."
Educare.pt (E): Tem observado o funcionamento de creches na Dinamarca e na Inglaterra, a nossa realidade está assim tão distante?
Acusa os adultos de ignorarem o potencial de aprendizagem das crianças. Apesar de toda uma "retórica" em que se garante a consideração pelas "necessidades e interesses" dos mais pequenos. Gabriela Portugal, docente e investigadora do Departamento de Educação da Universidade de Aveiro, não tem dúvidas: "As nossas crianças são pouco autónomas porque não as educamos para a autonomia".
Autora de inúmeros trabalhos, sobre qualidade educativa, espaços em creches e ecologia do desenvolvimento, destacam-se as obras " Ecologia e desenvolvimento humano em Bronfenbrenner" (1992) e "Crianças, famílias e Creche. Uma abordagem ecológica da adaptação do bebé à creche" (1998).
Recentemente, Gabriela Portugal, publicou a obra "Avaliação em Educação Pré-Escolar - sistema de acompanhamento das crianças" (2010) que, segundo explica, permite aos educadores avaliar o "contexto educacional da sua responsabilidade"[ver caixa]. Alguns dos seus artigos constam nos mais importantes pareceres do Conselho Nacional de Educação sobre a infância: "Educação das Crianças dos 0 aos 12 anos" (2009) e "Educação das Crianças dos 0 aos 3 anos" (2011).
"Nós somos mais superprotetores e isso envolve uma atitude mais limitadora ou cerceadora da ação e movimentação da criança."
Educare.pt (E): Tem observado o funcionamento de creches na Dinamarca e na Inglaterra, a nossa realidade está assim tão distante?
Gabriela Portugal (GP): Sim. Mas importa
considerar que há muitas maneiras de trabalhar bem. As culturas dinamarquesa ou
inglesa são, naturalmente, diferentes da nossa. Dentro da nossa forma de
trabalhar há espaço para melhorar a partir das nossas atuais circunstâncias.
Esse é o desafio. A forma de organização do espaço na Dinamarca traduz uma
conceção de criança mais competente e autónoma.
Nós somos mais superprotetores e isso envolve uma atitude mais limitadora ou cerceadora da ação e movimentação da criança. Temos muito medo que aconteça algum mal às nossas crianças, o que é indicativo de cuidado, de atenção e de afeto. Só que tudo isto em dose avantajada, exagerada, pode ser contraproducente para o desenvolvimento da criança. Numa creche francesa que eu conheci, já em 2000, as crianças circulavam à vontade por todo o sítio e mais algum. Entre nós isto será muito difícil, porque as crianças têm que estar sempre sob o olhar do adulto. Há uma grande necessidade de controlo!
E: A visão mais capacitadora das crianças ainda está assim tão afastada das nossas mentes?
Nós somos mais superprotetores e isso envolve uma atitude mais limitadora ou cerceadora da ação e movimentação da criança. Temos muito medo que aconteça algum mal às nossas crianças, o que é indicativo de cuidado, de atenção e de afeto. Só que tudo isto em dose avantajada, exagerada, pode ser contraproducente para o desenvolvimento da criança. Numa creche francesa que eu conheci, já em 2000, as crianças circulavam à vontade por todo o sítio e mais algum. Entre nós isto será muito difícil, porque as crianças têm que estar sempre sob o olhar do adulto. Há uma grande necessidade de controlo!
E: A visão mais capacitadora das crianças ainda está assim tão afastada das nossas mentes?
GP: Temos uma abordagem muito
uniformizadora e diretiva em relação às crianças. Se o adulto não estiver
presente, a controlar, assume-se que a sala vira o caos. Educar para a autonomia
é algo que se faz ainda de forma muito limitada... porque na nossa conceção de
criança esta é "incapaz".
O adulto atua como sendo a pessoa que sabe o que é mais importante para a criança. O que é que ela necessita. E, muitas vezes, não tem em consideração o vivido da própria criança. Atua como se ele fosse capaz de "programar" o desenvolvimento e aprendizagens das crianças. Apesar de uma retórica em que diz que tem em consideração as necessidades e interesses das crianças, que a observação da criança é um elemento sempre presente na sua prática. De facto, isso acontece, frequentemente, de forma incipiente. As reais potencialidades ou capacidades das crianças não são exploradas e atualizadas.
E: Mostrou uma imagem de criança numa creche nórdica a cortar a fruta. Uma educadora dizia que em Portugal era impensável pôr uma criança a lidar com facas...
O adulto atua como sendo a pessoa que sabe o que é mais importante para a criança. O que é que ela necessita. E, muitas vezes, não tem em consideração o vivido da própria criança. Atua como se ele fosse capaz de "programar" o desenvolvimento e aprendizagens das crianças. Apesar de uma retórica em que diz que tem em consideração as necessidades e interesses das crianças, que a observação da criança é um elemento sempre presente na sua prática. De facto, isso acontece, frequentemente, de forma incipiente. As reais potencialidades ou capacidades das crianças não são exploradas e atualizadas.
E: Mostrou uma imagem de criança numa creche nórdica a cortar a fruta. Uma educadora dizia que em Portugal era impensável pôr uma criança a lidar com facas...
GP: Nos países nórdicos, por
exemplo, é comum as crianças utilizarem facas. Na questão da circulação num
espaço arranjam-se estratégias orientadoras e que facilitam a autonomia e
independência da criança na sua movimentação. Estou a lembrar-me de uma
instituição em que havia portas pintadas de amarelo e portas pintadas de azul -
as crianças sabiam que pelas portas amarelas elas podem entrar e sair à vontade
mas nas portas azuis não entram. E havia dezenas de portas amarelas e apenas
algumas azuis! As regras estão interiorizadas e os adultos não andam atrás a ver
se as crianças cumprem ou não.
Ainda no que respeita à confiança na criança,
na Dinamarca há jardins de infância que não têm uma vedação e as crianças estão
a maior parte do tempo na rua. Confia-se nas crianças. Aqui seria
impensável.
E: Podemos concluir que as nossas
crianças podem ser mais autónomas se os adultos confiarem mais nas suas
competências?
GP: As nossas crianças são pouco
autónomas porque não as educamos para a autonomia. A educação para a autonomia
tem que ser feita de forma gradual. Assegurando que o adulto se sinta bem neste
processo de alargamento da livre iniciativa e autonomia da criança. Porque o
adulto não pode estar num estado de ansiedade permanente (o contexto também tem
de ser bom para o adulto).
"Muitas vezes, quando se pensa em
autonomia, pensa-se numa autonomia funcional - comer sozinha, ir à casa de banho
sozinha, esse tipo de coisas. Mas há um outro tipo de autonomia, que é tomar
decisões, ter iniciativas, ter objetivos e auto organizar-se para os
atingir."
Na Dinamarca observei crianças de
2 anos no momento da refeição. Elas vão buscar o prato, servem-se sozinhas, põem
água no seu copo, comem à vontade, despejam os restos para um recipiente,
colocam a louça suja no local próprio, depois saem e, sem nenhum adulto atrás,
vão para o jardim. Sozinhas. Isto é estranho para nós. Aí as crianças brincam
com paus, terra, água, trepam às árvores, saltam de estruturas altas e não há um
adulto que mostre qualquer sinal de ansiedade!... Tudo isto é encarado com
naturalidade e as crianças estão habituadas a esta forma de estar.
Nas chamadas "forest school", o
jardim de infância ou a escola na floresta, onde não há vedações, vi crianças
pequeninas que iam andando, andando, sozinhas, até chegarem àquilo que chamavam
de "waiting tree". Era uma árvore referência - a partir daquela árvore elas
sabiam que não podiam ir mais sozinhas. Chegadas ali, elas não avançavam mais.
Mas esta árvore ainda ficava a uma distância razoável da casa onde se encontrava
a educadora! Significa que as regras estão interiorizadas, não tem de haver ali
o adulto a chamar a atenção ou um muro a limitar a movimentação da
criança.
E: Mas para essas regras
estarem interiorizadas é preciso quem as faça interiorizar. Qual é o perfil do
educador de qualidade?
GP: Tem de ser
alguém que a par de sensibilidade, é estimulante e capaz de dar espaço à criança
promovendo a sua autonomia. Muitas vezes, quando se pensa em autonomia, pensa-se
numa autonomia funcional - comer sozinha, ir à casa de banho sozinha, esse tipo
de coisas. Mas há um outro tipo de autonomia, que é tomar decisões, ter
iniciativas, ter objetivos e auto organizar-se para os atingir. Educar para a
autonomia significa inovar em educação.
E: Em que patamar estamos
depois de Bolonha ao nível da formação inicial dos educadores de
infância?
GP: Ainda estamos em
balanço, porque o perfil de formação destes profissionais mudou muito com
Bolonha. Antes tinham uma licenciatura em Educação de Infância, de quatro anos.
Neste momento a qualificação para serem educadores é reconhecida a nível de
mestrado. [Os alunos] fazem uma licenciatura em educação básica que lhes confere
um conjunto de requisitos e de domínio de áreas de conteúdo consideradas
estruturantes (matemática, língua portuguesa, estudo do meio, expressões) e
podem candidatar-se a um mestrado em educação pré-escolar ou a um mestrado em
educação pré-escolar e ensino do 1.º ciclo do ensino básico.
A licenciatura em educação básica
não profissionaliza para a docência. Dá-lhes uma visão generalista sobre
questões de educação e sobre as áreas de conteúdos referidas. A partir daí podem
enveredar por um percurso profissionalizante direcionado para a educação
pré-escolar, 1.º ou 2.º ciclo.
Intervir
educativamente
E: Intervir educativamente
em creches pressupõe o quê?
GP: Pressupõe saber
o que se está a fazer e, sobretudo, porque se está a fazer. Perceber o que é que
faz sentido para uma criança entre os 0 e os 3 anos de idade, do ponto de vista
do seu bem-estar, desenvolvimento e aprendizagens. O educador não pode deixar de
compreender, respeitar e atender às necessidades e particularidades de todas as
crianças e de cada uma em particular.
E: As políticas educativas
estão a ir ao encontro da crescente atenção dada às questões da
infância?
GP: Globalmente
temos uma boa legislação no que respeita à educação de infância. Mas num momento
de grandes restrições orçamentais, em que as famílias lutam com vencimentos
exíguos e em que há dificuldades por parte dos próprios ministérios e das
instituições, torna-se difícil atender a todos os desafios que a educação de
infância levanta...
"Uma criança que recebe
atenção - que é escutada, que obtém respostas boas dentro de um tempo adequado -
desenvolve o sentido de que "eu sou importante, eu sou gostada, as pessoas olham
para mim, escutam-me". Este sentimento está na base do desenvolvimento de uma
boa autoestima e autoconfiança. "
E: Está a referir-se ao
despacho que aumentou o número de crianças e diminui as
auxiliares?
GP: O aumento do
número de crianças por sala, em parte, terá a ver com a sustentabilidade das
instituições. Mas não é por aí que isso se vai conseguir. Até porque as
instituições só podem aumentar o número de crianças se dispuserem de uma área
suficiente. No entanto, a existência de mais crianças num mesmo espaço vai
contra aquilo que a investigação indica relativamente ao ratio
adulto-criança.
Uma possibilidade de se contornar
as dificuldades do ratio poderá passar pela reconfiguração da forma de
organização tradicional por salas/territórios. Se as crianças não estiverem
adstritas a uma sala, com o seu respetivo educador, mas conhecerem o seu adulto
de referência (que cuida, muda a fralda, dá de comer, põe a dormir, etc.) e
circularem pela instituição, poderia encontrar-se uma forma interessante de
repensar o serviço educativo da creche.
E: Fazer mudanças ao nível
da organização do espaço...
GP: Sim. Em
Portugal, nas creches e jardins de infância as salas são mais ou menos
idênticas: todas têm uma casinha das bonecas, um cantinho de livros, de jogos,
brinquedos, etc. Mas poderá haver uma sala só para construções, outra só para
brincar com água e areia, outra só para livros e alguns jogos, etc. Há um adulto
que vai "rodando" e que poderá ficar responsável pela animação de uma
determinada sala durante uma semana. E as crianças circulam livremente e vão
para o espaço que entendem.
E: De que forma a qualidade
da creche pode influenciar a relação entre educadores e
crianças?
GP: A qualidade da
relação que se estabelece com as crianças é a principal dimensão de qualidade na
creche. Uma criança que recebe atenção - que é escutada, que obtém respostas
boas dentro de um tempo adequado - desenvolve o sentido de que "eu sou
importante, eu sou gostada, as pessoas olham para mim, escutam-me". Este
sentimento está na base do desenvolvimento de uma boa autoestima e
autoconfiança.
Claro que uma creche só é de
qualidade se os adultos que nela trabalham se sentirem bem e realizados no
trabalho que aí desenvolvem. Só adultos que estão bem consigo próprios poderão
estabelecer boas relações com as crianças.
E: É comum falar-se em
stresse ligado a crianças nestas idades. Como é que evitamos o seu efeito nas
nossas creches?
GP: O stresse em
creche tem muito a ver com a agitação, o barulho, a sobre estimulação,
demasiados brinquedos e com o pouco espaço para a sua expressão individual. Como
evitar? Cada creche, cada equipa de profissionais, poderá encontrar as suas
próprias respostas para evitar ou superar estas situações. Não é possível mudar
tudo ao mesmo tempo mas, pouco a pouco, pode chegar-se a um patamar de qualidade
mais elevado.
Avaliar no
Pré-escolar
Gabriela Portugal explica
como o Sistema de Acompanhamento das Crianças (SAC) pode contribuir para a
qualidade da intervenção na infância.
E: O que é o
SAC?
GP: É um instrumento
para avaliação em educação pré-escolar, resultante do projeto "Avaliação em
educação pré-escolar - Sistema de Acompanhamento das Crianças", financiado pela
Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Procurou-se dotar os educadores de
conhecimentos sobre procedimentos de observação, registo e avaliação, quer dos
processos, quer dos efeitos presentes no contexto educacional da sua
responsabilidade. O uso correto do SAC permite que os educadores de infância
tenham uma visão clara sobre o funcionamento do grupo, atendendo aos níveis de
implicação e de bem-estar, e sobre os aspetos que requerem intervenções
específicas, considerando a oferta educacional, o clima de grupo, o espaço para
iniciativa, a organização do contexto e o estilo dos adultos.
O SAC permite ainda a
identificação das crianças que necessitam de atenção diferenciada e a
consequente planificação de um conjunto de iniciativas que levem à resolução de
problemas e à maximização da qualidade educativa, tanto para o grupo como para
cada criança. Em suma, fundamenta o desenvolvimento do currículo pré-escolar e
atende aos resultados da ação educativa (desenvolvimento de
competências).
Uma vez desenvolvido, o ciclo
contínuo de observação-avaliação e ação inerente ao SAC, as capacidades de
empatia e de adoção da perspetiva da criança são reforçadas, assim como a
capacidade de refletir e questionar a existência de certos hábitos e rotinas.
Isso permite que o educador de infância possa sentir-se inspirado e orientado
para experimentar diferentes abordagens e inovar. Se os níveis de bem-estar e
implicação aumentam, os educadores sabem que estão no caminho certo, a promover
e a desenvolver a autoconfiança das crianças, alimentando a sua curiosidade,
motivação para a exploração e desenvolvimento de competências.
O uso do SAC sustenta o
desenvolvimento profissional ao nível da conceção e organização do ambiente
educacional; observação, planificação e avaliação; relacionamentos e intervenção
educacional, desenvolvimento curricular; trabalho em equipa, reflexão e
capacidades de investigação. Todas estas dimensões estão integradas no
Decreto-Lei n.º 241/2001, que define o perfil específico de desempenho do
educador de infância.
In: Educare
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