Made in China
Poderemos chamar-lhe Marta. Era
uma jovem candidata a professora como tantas outras e já ia no seu terceiro mês
de estágio.No dia da Festa do Natal, "as crianças mostravam eufóricas os seus
presentes". Todas... exceto uma. A jovem estagiária descreve "a aluna postada no
fundo da sala, de rosto sério, sem sorriso, expressão neutra, de olhos aguçados
e cabelo negro, calada, a observar. Era uma adolescente (que, soube depois,
tinha catorze anos) de origem chinesa".
O primeiro contacto é premonitório
do que mais adiante viria a acontecer: "Os nossos olhares cruzaram-se e eu
sorri. Hesitei em falar, melhor dizendo, gesticular, hesitei em tornar a olhar.
Depois de breves segundos, desisti de comunicar com a nova aluna".
Os pais da jovem chinesa tinham
encontrado num restaurante da cidade o destino feliz da sua saga migratória. Na
cozinha e na sala de jantar, o mandarim era a língua oficial. O patrão
recomendava que conservassem, nas falas e nos gestos, o exotismo e a
graciosidade, clichés ou veros atributos dos orientais que os clientes muito
apreciavam. Na rua e no mercado, a conversa era outra e a comunicação mais
exigente. Aí, o dedo indicador e alguns esgares compensavam a elementaridade do
vocabulário.
Mas a rua havia ensinado às filhas
um vasto repertório, onde pontificava o vernáculo. As miúdas, que eram umas
ignorantes da língua de Camões mas não eram parvas, adivinhavam nas palavras
captadas nas brincadeiras e zaragatas uma carga pejorativa pouco abonatória e de
utilização pouco recomendável no meio académico. Não é, pois, de espantar que se
remetessem para um total mutismo na sala de aula. E "lá sossegadinhas eram, nada
que se comparasse àqueles vândalos do bairro"...
A estagiária deixou passar as
férias de Natal, deixou que decorresse mais de um mês, e, por alturas do
Carnaval, reuniu toda a coragem necessária e avançou para o fundo da sala, ao
encontro do desafio. Meteu conversa com a chinesa, mas obteve "uma resposta
negativa". No dialeto do bairro, como no mais puro mandarim, este eufemismo
equivale, no mínimo, à expressão "vai dar uma volta, a ver se chove" (e o leitor
já percebeu que também o narrador não escapa ao recurso a figuras de estilo,
para não ter que enxamear a escrita com reticências).
A estagiária não se deu por achada
com a "resposta negativa", habituada já a outros e bem mais contundentes mimos
que os "vândalos do bairro" costumavam dispensar às estagiárias. Fazendo-se
desentendida, a Marta leu no olhar da aluna qualquer coisa parecida com um
pedido de atenção. E passou a entrecortar o seu afã de estagiária com momentos
de encontro com a aluna do fundo da sala, o que parecia satisfazer a professora
cooperante:
- "Mas a menina não se iluda! Não
sei o que fazer dessa aluna. Está-me desde janeiro no pa, pe, pi, po, pu e no
ta, te, ti, to, tu. E daí não passa..."
Efetivamente, a Li Yan (assim se
chamava a pequena) dali não passava. Mas, "sentada a seu lado, com montanhas de
imagens e objetos", a estagiária Marta trabalhava "arduamente em todos os dias
de estágio e sempre que era permitido." Tinha prescindido do "pa", do "pe" e do
"pu". A Li Yan interessou-se pelos jogos de identificação de palavras, construía
pequenas frases como "A Li tem os olhos pretos" e a Marta até já tinha
conseguido obter da aluna chinesa "um sorriso" e um "Olá''.
Passo a passo
Um mês mais tarde, a estagiária
arriscou fazer um teste. A Marta apontou para a mesa e disse "mesa". A jovem
chinesa apontou para a mesa e disse a palavra "mesa". A Marta apontou para o
livro e disse "livro". A aluna apontou para o livro e repetiu: "livro". A Marta
apontou para o lápis e disse "lápis". Porém, quando a miúda apontou para o
lápis, respondeu: "made in China". E, com sotaque muito british,
acrescentou:
- "China! That's my
country!"
A surpresa da Marta seria ainda
maior. Aproveitando-se das liberdades conferidas pelos "tempos mortos dos
intervalos", descobriu que, para além de bem falar inglês, a Li Yan nunca errava
contas de três e mais algarismos no divisor, que possuía um absoluto domínio de
conceitos na área das ciências naturais, e que não era despicienda a sua mestria
na expressão plástica.
Nenhuma destas competências
pareciam relevantes para a professora cooperante. Em abono da verdade, digamos
que a professora nem suspeitava da existência destes dons naquela aluna do fundo
da sala. O tempo era escasso para "dar o programa à turma", não sobrava tempo
para chinesices. Nem o facto de a Li Yan ser dotada de um profundo conhecimento
do património literário universal impressionou os soberanos avaliadores. Foi de
riquexó para "a sala da primeira". Onde é que se havia de meter uma jovenzinha
de catorze anitos que não percebia uma palavra de português? Na primeira classe,
como é bom de ver!
A culpa do inevitável "atraso" era
da pequena, por ser made in China, como acontece com os lápis e as porcelanas. A
culpa era toda da gaiata de olhos rasgados que perturbavam a normal fisionomia.
Quem a mandou vir de um lugar que os etnocêntricos europeus designam por Extremo
Oriente para o Extremo Ocidente do Extremo Oriente?
Porém, a jovem estagiária nem
sonhava quantos "chineses" a rodeavam, naquela sala de aula. Nem ela, nem a
professora cooperante, a qual, só provindos do bairro, contava cinco ou seis
"chineses" na turma. Chineses seriam, pois "não acompanhavam os outros, nem
pareciam compreender o que se dizia".
A futura professora também não
imaginava quantos "chineses" iriam passar ao largo das suas futuras aulas. E as
recomendações de uma pragmática supervisora apaziguavam as dúvidas que, por
vezes, assomam aos jovens espíritos:
- "Enquanto for aluna estagiária,
a menina terá de fazer planos para alunos diferentes, quando lho for pedido.
Depois, quando já for professora e tiver a sua turma, segue os alunos normais e
faz como vê agora a sua professora cooperante fazer."
Se bem que não captasse toda a
lógica da sábia recomendação, a Marta não ousava arriscar uma má nota no estágio
a troco do bem-estar de meia dúzia de chineses. A argumentação com que pretendia
legitimar a cínica atitude era a mesma que se podia ouvir da boca de todos os
seus colegas de curso:
- "Quando tiver uma turma só
minha, dou uma ficha à turma e assim já posso dedicar-me a crianças como a Li
Yan. Agora, tenho de me sujeitar, não é? Se eu sou obrigada a apresentar planos
e a cumpri-los à risca!... Que é que eu posso fazer?"
- "Pois é... - sublinhei - os
chineses não entram nos teus planos."
A Marta não tardou a compreender a
ironia (e matreirice) do meu comentário porque, em alguns estágios, incidentes
críticos ajudam a reescrever os insondáveis desígnios de uma profissão. Em
meados de abril, chegou a vez de a Marta dar a sua aula. "Contava e muito para a
avaliação", pelo que cumpriu à risca o plano. Como mandam as regras de bem
planificar, os primeiros três minutos e quarenta e cinco segundos foram
despendidos na "motivação". Ia já a passar à exposição do tema, quando o seu
olhar se cruzou com "o petrificado olhar da Li Yan". Parecia dizer-lhe "vem
sentar-te junto de mim!" Sentiu que "aquele olhar implorava, mas nada podia
fazer". A Li passou aquele manhã a olhar para a sua amiga, como a dizer "vem ter
comigo".
A Marta confessou-me o
desconforto: "Senti-me tão mal que, sempre que olhava para ela, desviava o
olhar, para não me sentir ainda pior. Aquele olhar incomodava-me e eu desisti de
olhar para ela. Foi o que me valeu!" Felizmente, a professora cooperante e a
supervisora não se aperceberam das hesitações, e a Marta passou, com êxito, às
etapas seguintes do plano de aula para os não-chineses.
Talvez porque a consciência a
acusava de algo que ela apenas pressentia, aproveitou uma das nossas conversas
de fim de tarde para "desabafar". Na idade da Marta, ainda são comuns estas
crises, rapidamente debeladas no salve-se quem puder dos dias
probatórios.
O episódio da "aula dada pelo
plano" parece não ter afetado a relação. Se a Marta ganhara consciência de que
nada sabia de ensinar, compreendera que o que é melhor para os alunos terá de
ser o melhor para os professores. Crescera como pessoa e aprendera que só
havendo pessoa nela se pode plantar um professor.
Por sua vez, Li Yan ficara algo
confusa, mas a sua sensibilidade dizia-lhe que continuariam amigas. Sinal seguro
da existência do vínculo afetivo foi o facto de Li Yan ter passado a tratar a
estagiária por "Professora Marta", no que diferia dos colegas da turma, que não
abdicavam do tradicional tratamento por "estagiária" imposto por uma professora
cooperante pouco dada a confusões ou a faltas de respeito.
No dia do aniversário da
"professora Marta", a Li Yan presenteou-a com "um estupendo desenho" (nas
palavras de uma Marta visivelmente comovida) acompanhado de quatro pequenas
grandes frases:
"A escola é bonita e
grande.
O recreio é grande. A Marta é
muito boa e muito bonita. Eu muito gosto Marta."
E à única "professora" que lhe
prestava atenção a Li Yan conferiu o privilégio do acesso aos segredos de um
"Diário", se bem que (como me confidenciou a Marta) estivesse "escrito em chinês
e não se percebia nada". A jovem chinesa estava atenta às dificuldades de
leitura da "professora". Por isso, os dias que se seguiram foram de docência a
meias: se a Marta ajudava a Li Yan a alargar o seu conhecimento do português, a
Li Yan ensinava à Marta rudimentos de escrita chinesa.
Por: José
Pacheco
In: Educare
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