Como se vive com um filho autista
Este texto de Cristina Margato foi
publicado na edição de 31 Outubro de 2009 na Revista
Única/Expresso:
Ter um filho autista não é
algo que se possa prever. Tendo-o, um mundo desconhecido desaba na cabeça dos
pais. A vida sucede-se entre barreiras e dificuldades.
Marco dá um forte esticão. O
técnico acompanha-o como uma sombra. Um duplo corpo sobre o menino que foge por
entre as árvores. Aos sete anos, tem um físico maior que a idade. É alto, um
touro difícil de domar. Parece viver num outro mundo - onde os sons não entram.
De regresso à sala do jardim-escola da Trafaria, o rapaz baterá com violência
uma cadeira contra o chão. A pequena Mariana, dois anos e meio, assusta-se. Cai.
Chora. Todos os técnicos se levantam. As outras crianças seguem serenas. Uma
técnica beija e reconforta a menina. Outra desabafa: - É a primeira vez que a
Mariana chora.
Uma reacção é uma
festa
Mariana chora! Tem uma resposta,
uma reacção. O incidente já não será uma lembrança da dificuldade em lidar com
Marco - chegado àquela nova sala de Intervenção Terapêutica Intensiva para
Autistas, da ABC Real, em Setembro passado. O choro da minúscula Mariana é
motivo de comemoração. A reacção de uma criança com autismo é sempre uma festa.
Um sinal de que se entrou nesse mundo inacessível, onde vivem. Que se derrubou
mais um tijolo do muro que nos impede tantas vezes de comunicar.
Fim de intervalo na escola da
Trafaria. Cada criança, das seis que frequentam a sala de terapia segundo o
método norte-americano ABA (Applied Behavioural Analysis/Análise Comportamental
Aplicada), trazido da Califórnia para Portugal por Albertina Marçal, é
acompanhada por um técnico.
Um técnico por criança à mesa de
trabalho, um técnico por criança à mesa de refeições, um técnico por criança no
intervalo.
Meses antes, no Colégio Campo de
Flores, na Caparica, onde funciona há cerca de um ano a primeira destas salas,
onze crianças pequenas trabalham à frente de uma mesa. É a primeira turma-piloto
do ABA em Portugal. Cada técnico português, formado pelos norte-americanos,
encarrega-se de desenvolver e trabalhar uma das competências que qualquer outra
criança da mesma idade adquire, em regra, sozinha. De 25 em 25 minutos, Marina,
responsável pela sala, toca uma sineta. Nesse momento, cada criança é mudada de
mesa, como se trabalhasse numa linha de produção de uma fábrica. É meio-dia. O
trabalho delas começou às oito da manhã e está a chegar ao fim. Nenhuma, porém,
dá sinal de cansaço ou indisposição.
Pais apanhados de
surpresa
Ao contrário do que aconteceria em
qualquer outra sala de aula com crianças da mesma idade, a presença de um
estranho, a minha, não é notada. Ninguém me dirige o olhar ou a fala. Sou uma
nuvem invisível. Na Caparica. Na Trafaria.
Mas, para que estas crianças
chegassem aqui, muito teve de acontecer na vida delas e dos pais. Muito teve de
acontecer também na vida de Albertina Marçal, mãe de um adolescente com síndroma
de Asperger, fundadora da ABC Real Portuguesa e responsável pela 'importação'
deste método.
Foi no momento em que Alexandra e
Carlos equacionavam a possibilidade de ter mais um filho que o diagnóstico os
apanhou de surpresa. Há muito que a família os alertava para alguns sinais
perturbadores no comportamento do filho. Tiago tinha pouco mais de dois anos.
Não falava, repetia exaustivamente alguns sons. Ao mesmo tempo balançava as
mãos. Não reagia às conversas dos adultos, mesmo quando a voz lhe era dirigida.
E, apesar disso, era um menino muito meigo.
Primeiros
sinais
Durante longo tempo, os pais
negaram a possibilidade de o filho ter algum problema. Comparavam o
comportamento de Tiago ao seu quando crianças. Até o pediatra, um conhecido
médico de Lisboa, dizia, a cada consulta de rotina, que tudo ia bem. Os pais
repetiam para si próprios: "Ele tem muito tempo para falar e para fazer o mesmo
que as outras crianças". A este pensamento juntavam um facto: Tiago tinha
problemas de ouvidos. Uma otite serosa poderia ser a causa do atraso na fala. O
médico otorrino concordava e pedia mais tempo.
Mário Relvas, pai de um autista de
21 anos, diz que o filho também lhe parecia surdo. Os primeiros testes, porém,
consideram que tem uma audição normal. Aos seis meses, Bruno podia entreter-se
durante horas apenas a olhar para as mãos. Uma obsessão que não passava
despercebida aos pais.
Catarina Lourenço, mãe de Afonso,
9 anos, e Martim, 8 anos - o primeiro com o diagnóstico de autista e o segundo
de Asperger - lembra o que a pediatra então lhe disse: "Não se preocupe.
Einstein só falou aos quatro anos". Afonso também era muito meigo. "Muito calmo.
Não dava trabalho nenhum", lembra a mãe. As suspeitas dos pais de Afonso
começaram quando perceberam que não reagia ao nome. Mas mais uma vez não se
tratava de um caso de surdez. O diagnóstico final só veio muitos anos depois.
Quando a própria mãe, depois de muitas horas passadas na Internet, decidiu
arriscar a pergunta: "Mas é autismo ou não?" Ouviu finalmente um sim do
pedopsiquiatra Pedro Caldeira.
Afonso deveria ter então quatro
ou cinco anos. Catarina diz, porém, que conhece pais a quem lhes foi dito
directamente; e que isso, segundo os próprios lhe contaram, também não lhes fez
nada bem.
Afonso era acompanhado no Hospital de Santa
Maria, desde os dois anos, por uma psicóloga. Até aí impunham-se as palavras
"perturbação da comunicação e de relacionamento". Na verdade, os autistas sofrem
disso, mas de tantas outras coisas mais. Cada caso é um caso; e o espectro da
doença é um leque tão vasto que é difícil definir exactamente o que faz um
autista ou não. Uns são meigos, outros violentos. Uns falam, outros não. As
variantes são infinitas. Mas têm algo em comum; todos erguem barreiras,
dificultam a relação com o mundo.
O diagnóstico, por sua vez, não é fácil de
conseguir. Médicos e técnicos têm medo de errar. Porque na verdade também erram,
para o bem e para o mal.
Testes atrás de testes
Os primeiros testes do Tiago, realizados por
uma técnica com experiência, não detectam qualquer problema. Mas as pressões
familiares tornam-se maiores. A mãe muda de pediatra. Volta a repetir os testes.
Por fim, o diagnóstico chega: "O Tiago tem uma perturbação do espectro de
autismo", dirá Rosa Gouveia, pediatra do desenvolvimento, no Hospital CUF
Descobertas.
A resposta a todas as dúvidas não sossega
ninguém. Pelo contrário. Potencia uma avalancha de questões. E desta vez as
respostas são ainda mais difíceis de obter. Se os pais de Tiago, em pleno século
XXI, sentiram muitas dificuldades e incompreensões, Mário e a mulher, duas
décadas antes, tiveram uma luta ainda maior: "Alguns profissionais de saúde não
estão, ainda, devidamente sensibilizados para o autismo", desabafa Mário
Relvas.
Calvário de consultas
Quando Bruno nasceu, os profissionais sabiam
ainda menos. Mas no passado como hoje o processo de compreensão dos pais é quase
sempre um verdadeiro calvário de consultas. Os pais de Tiago percebem que ele
tem de começar a ser tratado. "Mas como?". Ao mesmo tempo surge outra questão
mais íntima, dolorosa e igualmente difícil de colocar: "Porquê?"
Ao contrário de outras doenças, como a
Trissomia 21, o autismo não é diagnosticável durante a gestação. Dificilmente se
descobre antes dos 18 meses de vida. As causas são multifactoriais, além de que
não se consegue saber exactamente quais os elementos determinantes para a
criação de um espaço propício à emergência do espectro autista. Os testes
genéticos às crianças são importantes. Mas, de modo algum, indicam o caminho a
seguir, a forma como a intervenção terapêutica deve ser feita. Tiago, Bruno,
Afonso fizeram-nos. Nenhum deles demonstra ter alguma alteração genética, alguma
malformação.
Orfãos do Estado e do SNS
Entre as poucas certezas que há em relação à
doença, a principal é a de que, quanto mais cedo houver intervenção terapêutica
ao nível comportamental, melhores são os resultados. Mas nenhum pai está
preparado para o que vem a seguir: um mundo de dificuldades, onde se sentem
órfãos do Estado e do Sistema Nacional de Saúde.
Nesta fase, também não é raro um dos pais
começar a sentir-se um pouco mais culpado, pensando que a carga genética que
transporta é a responsável. Mas no íntimo dos dois tudo é posto em causa. Mesmo
que não o confessem. A esta fase os especialistas chamam normalmente "luto". E
sem o 'luto' cumprido não há como avançar. Ou seja, é imperioso aceitar a
situação. Agir rapidamente.
Alexandra pede uma consulta de
avaliação no Hospital da Estefânia, em Lisboa. Mas a resposta não se afigura
imediata. Decide avançar para o sistema privado (gasta 350 euros). A consulta no
hospital público só chega cerca de um ano depois. Nessa altura, Tiago já tinha
iniciado tratamento. Faz terapia Teacch, outro método norte-americano, terapia
da fala e psicomotricidade, no Centro de Desenvolvimento Infantil LogicaMentes,
fundado por Cláudia Bandeira de Lima, psicóloga clínica e de desenvolvimento do
Hospital de Santa Maria. O programa de quatro horas semanais de Tiago fica em
485 euros mensais. Os pais não recebem qualquer subsídio.
Mário diz que a lacuna ao nível de
consultas de diagnóstico do Sistema Nacional de Saúde deixa campo aberto para
que alguns privados monopolizem estas intervenções e as seguintes, ou seja, já
na fase de acompanhamento, desenvolvimento, terapia.
Os pais informados sabem, porém, o
quanto urge agir. A espera pode ter efeitos muito nefastos ao longo de toda a
vida do filho; e os estudos existentes são unânimes em considerar que a eficácia
do tratamento comportamental é muito maior quando aplicado, de modo intensivo,
até aos quatro anos. O cérebro é mais plástico, flexível. Absorve melhor a
aprendizagem. Depois todos os avanços são mais lentos. É, de resto, por essa
razão que a grande batalha científica nesta área está em encontrar métodos de
diagnóstico que possam ser fiáveis na mais tenra idade.
Autismo é prioridade para
Obama
Barack Obama, presidente dos
Estados Unidos, não é, de resto, alheio a este problema. Tornou o autismo uma
prioridade na saúde infantil, e adjudicou 5 mil milhões de dólares à
investigação nesta área, faz agora um mês. Os norte-americanos já gastam cerca
de 60 mil milhões de dólares por ano nesta doença. Com o crescimento exponencial
do número de afectados, que os estudos apontam como certo, julga-se que dentro
de dez anos este valor andará entre 200 e 400 mil milhões de dólares. Aquilo que
começa a parecer uma epidemia (não apenas norte-americana, embora as
estatísticas deste país sejam as mais antigas e fiáveis) é também uma hecatombe
económica.
Na fase de 'luto' dos pais deveria
iniciar-se a ajuda psicológica. Raramente, porém, são encaminhados para serviços
de psicologia pelos técnicos com quem se vão cruzando. Ou decidem avançar por
meios próprios, pedindo ajuda ao médico de família, ou se entregam à dor e à
alienação, mesmo que ainda não tenham presentes algumas das consequências da
doença ao longo da vida. Têm de reaprender a lidar com o filho e com os
sentimentos.
Famílias
divididas
Catarina teve a sorte de ser
acompanhada no próprio Hospital de Santa Maria. Alexandra desabafou com a médica
de família. Em troca recebeu antidepressivos. Há também quem enfie a cabeça na
areia numa tentativa de minimizar a importância da doença do filho. Muitos pais
ouvem ainda o que não gostam, mesmo dos familiares ou dos técnicos. Não raras
vezes, as famílias dividem-se. Todos têm opiniões, mesmo quando não fizeram
nenhum esforço para se informar. O isolamento cresce. O muro é cada vez mais
alto. E se os técnicos em geral recusam a ideia de muro, pais como Catarina não
têm problema nenhum em assumi-lo. "A minha vida mudou a nível pessoal, social,
profissional. É muito duro lidar com tudo isto. Se não encararmos o muro, nunca
o vamos resolver. Estou farta do politicamente correcto", desabafa.
Catarina é bailarina da Companhia
Nacional de Bailado (CNB). Quando se preparava para estudar outra vez e escolher
uma nova profissão - consciente de que a vida de uma bailarina tem 'prazo de
validade' -, descobriu que tinha um filho autista. O terceiro filho, Martim,
também exigiria tratamento. É Asperger. A sua vida é um colete-de-forças. Não é
fácil conciliar os seus horários profissionais e os do marido, seu colega na
CNB, com as terapias dos miúdos.
No caso de Tiago, um dos primeiros
embates ocorreu na escola, um colégio privado, onde inicialmente todos quiseram
ajudar. A polémica surgiria a propósito de um pormenor. Na sala havia um
espelho. O espelho provocava-lhe um comportamento repetitivo, uma estereotipia,
que se não for correctamente contrariada agrava o autismo. Numa reunião, a mãe e
a psicóloga que acompanha a criança pedem à directora da escola e ao psicólogo
do colégio para retirarem o espelho. "Tem de se habituar como os outros
meninos", foi a resposta taxativa. A psicóloga e a mãe ainda contrapõem: "Mas
isso é como pedir a um paraplégico que deixe a cadeira de rodas e
ande".
A escola não recua. A mãe ainda
ouve: "Já sabemos que ele não vai ser engenheiro profissão do pai, mas ao menos
gostaríamos que ele fosse autónomo".
Trabalho a tempo
inteiro
A ignorância é democrática. E nem
os técnicos de educação escapam. Mário, por exemplo, diz que teve muitos
problemas a nível profissional, nomeadamente na altura em que era
polícia.
Um ano depois do diagnóstico,
surge a separação dos pais de Tiago. A situação tornara-se insustentável. Mais
uma vez, como em quase toda esta história, os pais de Tiago cumprem
estatísticas. "Um autista prende 24 horas sobre 24. Por isso, o cansaço surge e
a incompreensão que nos afecta gera algum mal-estar", reconhece
Mário.
Catarina e Mário, o pai de Afonso
e Martim, continuam juntos após 14 anos de vida em comum. "Somos teimosos", diz
Catarina. Albertina e o marido sobreviveram a tudo, mas Albertina não esconde:
"Estamos cansados. Ser pai de uma criança destas é um trabalho a tempo inteiro,
e isso é reconhecido nos Estados Unidos. Mário, que ainda hoje está casado,
confirma que é difícil preservar o casamento: "Deixámos de ter tempo para nós
como casal. Não podemos sair à noite, ir jantar fora, não podemos ter um momento
para nós".
Os autistas exigem uma rotina
muito disciplinada, e podem ser muito exclusivos nas relações. Delas dependem de
uma forma extrema. Mário lembra o caso de um filho adulto que morreu apenas
algumas semanas depois do pai ter sido internado num hospital.
O importante é não
desistir
No caso de Bruno, é a mãe que
costuma ir buscá-lo à escola desde pequenino: "Se for eu, tenho de o entreter
até a mãe chegar a casa, caso contrário gera-se um mal-estar nele que o leva a
ficar perturbado e a ter uma alteração radical no comportamento", conta
Mário.
Ir a um supermercado, centro
comercial ou a um restaurante pode ser um dos maiores desafios para os pais do
Bruno. Mas ainda assim não desistem. Quando o conseguem, Mário publica a
'reportagem' no seu blogue(http://aromasdeportugal.blogspot.com). Cada passo é
conquistado dia-a-dia. Em adultos, a perturbação é mais difícil de controlar:
"Passam a ser adultos com força e voz grossa... e já não são aquelas criancinhas
de quem os estranhos diziam 'mal-educados, fazia-lhes falta era um par de
tabefes'", continua Mário.
Catarina está a sentir essa fase
no filho. "Ontem, partiu a porta da máquina de lavar roupa, queria voltar a
vestir a mesma roupa, que eu já tinha posto para lavar". Mudaram o professor de
Afonso na escola pública que frequentava. "Ainda fizemos um abaixo-assinado... A
referência dele na sala era o professor. Desde o início das aulas que grita
todos os dias antes de sair de casa e atira-se para o chão". Não é duro só para
ela e para o pai. A irmã mais velha de Afonso, Filipa, tem 14 anos e não escapa
ao stresse de que todos sofrem na família.
"A minha filha pensa muito e pensa
que, quando for grande, também pode ter um filho assim", continua Catarina. Na
altura em que os pais de Tiago se separam, as despesas com o tratamento do filho
já representam uma fatia significativa no orçamento familiar. Agora, só em
terapias, Tiago custa 800 euros por mês, fora os 430 euros de colégio normal.
Até ao momento não tem qualquer subsídio. No ABA, cada criança fica por mil
euros/mês, sendo que a ABC Real conta com salas cedidas por instituições e que o
pagamento de cada criança se esgota no salário de um técnico e nos materiais.
Afonso e Martim pesam 900 euros por mês. Quanto a Bruno, continua dependente dos
pais aos 21 anos. Mário diz não saber o que vai ser de Bruno se alguma coisa
lhes acontecer.
"Vivemos com uma espada sobre a
cabeça", desabafa Mário. Na voz triste percebe-se que está cansado de
lutar.
Rita Costa, a professora de
natação de Afonso (passou um ano com ele aos gritos dentro da piscina até ele
aprender a nadar) e também terapeuta de psicomotricidade do Tiago recorda uma
história muito triste: "Conheci uma mãe a quem um homeopata convenceu que iria
pôr o filho a falar. Gastou imenso dinheiro. Fez imensas viagens. Mas o miúdo
nunca falou. Um dia decidiu ter o segundo filho. Dizia que não aguentava a ideia
de ter um filho que não lhe chamasse mãe".
Ler mais: In Expresso
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